Opinião
Estádio não é terra sem lei
Se você acompanha a torcida do Coritiba nas redes sociais, hoje deve ter percebido uma polêmica em torno de uma “nova” música de uma das torcidas presentes no Couto Pereira. Nova entre aspas porque a música não foi composta agora, mas por volta do início do século. Foi deixada de lado quando o grupo que originalmente a cantava se desfez, mas trazida de volta há cerca de 3 anos, quando a nova torcida se formou. Somente hoje, entretanto, a música foi trazida à tona através de um post no Twitter. Logo depois, as páginas oficiais da torcida que a canta postaram um novo vídeo com a letra, causando ainda mais revolta.
Os versos falam em “bater numa cigana” e “rir do sangue a escorrer”, entre outros absurdos. A música, para mim, é muito ofensiva. E antes de discorrer sobre o tema, eu preciso dizer que concordo sim quando dizem que há outras músicas de torcida, bem mais populares que essa em questão, que também ofendem e são desnecessárias. Há algumas que já cantei, mas que hoje já não vejo tanta graça ou motivo para me juntar ao coro, como a versão do hino do Paraná Clube, por exemplo. Não acho (mais) que a graça do futebol seja essa. Na minha opinião, as provocações podem e devem acontecer, mas as músicas podem sim cumprir esse papel sem ofender. E na boa, eu prefiro muito mais aquelas letras que evidenciam o nosso amor pelo Coritiba do que aquelas que evidenciam a existência de um rival.
Dito isto, preciso ressaltar o quanto a música da cigana passa – e muito – de todos os limites. É uma mistura de violência contra a mulher e intolerância religiosa, sob o pretexto de exaltar a instituição Coritiba. Mas será que para exaltar o Coritiba era preciso recorrer à versos tão agressivos? Se uma música com esse teor fosse entoada em qualquer outro círculo, será que veríamos tanta gente defendendo que é só uma música? Por que o estádio e as torcidas são vistos como espaço e grupos separados da sociedade? Por que no estádio não se deve ter respeito, ser contra a violência e contra o preconceito de qualquer tipo como se deve fora dele?
Precisamos urgentemente parar de achar que coisas indiscutivelmente absurdas são normais, apenas por estarem inseridas no meio do futebol. Isso vale tanto para essa música quando para inúmeras outras situações que vemos acontecerem com frequência. Temos que entender que se ofende chamar alguém que você não gosta de “bicha”, chamar o adversário por esse nome dentro do estádio também será ofensivo; se é crime ser racista ou xenofóbico, usar a cor da pele de um jogador do time rival ou o lugar onde ele nasceu para desestabilizá-lo dentro do campo também será crime; se é ridículo assoviar para uma desconhecida na rua ou descredibilizar uma colega de trabalho por ser mulher, também será ridículo você assoviar para uma bandeirinha ou gritar que ela está tomando decisões erradas só por ser mulher. Estamos sujeitos a cometer, nas arquibancadas, todos os erros que estamos sujeitos a cometer enquanto vivemos o nosso dia a dia.
A música é uma aberração completa, e fiquei feliz de ver muito mais gente criticando do que defendendo. É realmente preciso deixar de propagar esse tipo de mensagem como normal dentro de um estádio. A cada 24 minutos, o Paraná registra um caso de violência contra a mulher; já as denúncias de intolerância religiosa aumentaram 56% no Brasil em 2019. Logo, a mensagem por si só já é dolorosa para muita gente, mesmo que não sejam reais os crimes que a letra descreve. Talvez possa parecer difícil deixar velhos hábitos para trás, mas o ponto é que não há nada a perder com isso. Eu aposto que extinguir esses comportamentos do nosso futebol, dignos da Pré-História, vai fazer do estádio um espaço muito mais plural e bem mais acolhedor para todos, sem exceção. E caminhando para frente, sem olhar para trás, poderemos, enfim, evoluir como sociedade.